As dores delas
Por Livia Milanez

 

Ana, Salete, Verônica e Sandra, a ciranda das quatro filhas de Maria. No centro, também parte da roda, Laura, filha da outra Maria. Do lado de fora, conduzindo o ritmo da brincadeira, o pai de todas, marido das duas Marias. A primeira sem saber da outra, ou sem admitir, compondo todos uma família com dois lares e muitos silêncios, apesar da imaginada algazarra das quatro meninas em uma das casas, fruto das divagações solitárias de Laura a partir das narrações de seu pai, que com ela compartilhava os sucessos das outras na escola, nos esportes e na carreira.


(…) atravessar o tempo em silêncio, enganar a dor da ausência e fingir esquecimento fazem parte de uma fórmula simples e segura de sobrevivência. (As dores delas, Ana Raja)


Desde que nasceu, a caçula sempre esteve no centro da roda, acompanhando seu giro ao longo dos anos, até sair do ostracismo tomando a mão de duas das irmãs para integrar-se ao círculo, não sem oposição das outras duas, para quem era preciso rejeitá-la como prova de lealdade à mãe e às próprias feridas.


Você sabe tudo sobre mim. O que sei de você é que tem os cabelos da avó, que seus olhos são pequenos como os meus e que somos irmãs. (As dores delas, Ana Raja)


O romance de Ana Raja apresenta uma narrativa onisciente não invasiva, em que todos têm permissão para expor a si mesmos, inclusive aqueles de quem se tem apenas a memória, e não as intenções presumidas, como é o caso dos avós maternos de Laura e de suas tias. Sobre a Maria mais velha, embora não se tenha sua percepção direta, apresentam-se sua história anterior ao matrimônio e indícios de seu temperamento em casa ao longo do crescimento das filhas, sendo possível inferir o que para ela significava ter um marido que se dividia entre seu lar e outro em uma época em que o casamento era menos uma opção do que um meio de vida escolhido pelas famílias das mulheres. E assim, sem ser escolha por afeto, o casamento era quase um negócio, onde os sentimentos não são românticos, ainda que sejam permissivos ao amor, este compreendido como o desejo de estar e de ser para o outro, ser presente, perto ou longe, na mesma casa ou em outra.


Estranho que sinto como que, sim, aquela que fui, recém-chegada ao mundo, percebeu o peso da ausência delas, o vazio dos cômodos. (As dores delas, Ana Raja)


Sob este aspecto, o do desejo da presença e do pertencimento, o livro fala do amor de um pai por seus lares, e também do amor fraterno, no qual a constituição da memória comum é um dos principais pilares, disto se ressentindo Laura, para quem era importante estar de mãos dadas com as outras na ciranda, imagem que perpassa o livro.


A metalinguagem que perpassa o texto transmite a autoconsciência de Laura sobre seu processo de percepção dos outros e de si, mas é dispensável afirmar que o livro consiste de autobiografia, autoficção ou autonarrativa, pois a rotulagem por vezes nos desvia do objetivo de fruição estética de uma prosa com componentes poéticos.


Portanto, me encontro atrás dessa tela, contando uma história comum (…)

Aqueles poucos passos (…) tornaram-se o momento simbólico de redenção em minha vida. O lirismo deste livro.

Veja, Laura, é preciso chegar aos poucos ao coração e construir um elo.

Laura, sabe que essa história daria um livro?

Por que preciso da história dos outros se eles não comungam a minha?

Os pedaços pequenos desse capítulo estranho foram escritos em papel manchado por borrão de fundo de copo de vinho.

(…) não faço das pessoas um rascunho. (As dores delas, Ana Raja)


Tratando não apenas de um empreendimento literário consciente por parte de uma das personagens, mas também de suas memórias, é preciso lembrar que, como tais, as memórias dizem o que também não está escrito,


Quanto tempo dura um ontem? Tento resgatar o meu ao me misturar, nesse hoje, à coleção de fotografias desbotadas que moram no velho álbum. (As dores delas, Ana Raja)


como nO Caderno Proibido, de Alba de Céspedes, um diário em que o principal está fora e deve ser lido nas entrelinhas, sendo esta a característica comum às memórias, cartas e diários: entregar ao interlocutor o dever de questionar o que foi expresso nas palavras. No livro de Alba, o não escrito é a concretização das realizações amorosas da esposa e do marido fora de seu casamento, enquanto as linhas do diário nada denunciam, apenas narram possibilidades, permitindo, assim, a fuga perante qualquer acusação. No romance de Ana Raja, o não escrito é a consciência de todos sobre o segredo familiar das duas casas, sendo admitido apenas que duas das irmãs de Laura sabiam sobre ela há mais tempo.


Caminhamos por lugares iguais, mas havia sempre bifurcações para nos afastar. Tia dos seus filhos, cunhada do seu marido, espectadora anônima das suas alegrias e tristezas. Irmã que se cansou de se hospedar em segredos. (As dores delas, Ana Raja)


Em meio, porém, à névoa que é a construção de nossas autonarrativas perante a falibilidade da memória e em meio ao silêncio dos conhecedores do segredo, nenhum personagem poderá ser acusado do que não tem culpa, e este é o segundo trunfo do texto de Ana Raja: apresentar uma história sem réus, ainda que o caráter egoísta e acusatório de algumas personagens pudesse colocá-las nessa posição.


Na afobação de cuidar de suas crias, acabou cuidando de si mesmo. Somente meu pai se beneficiou dessa ponte. (…) Em cada casa meu pai era um; nós, suas vítimas. (…) A ponte meu pai construiu para ele. Para nós, construiu a distância. (As dores delas, Ana Raja)


O pai, articulador dos dois mundos familiares, apesar de apresentar um temperamento amoroso e pacífico, em alguns momentos é apresentado como o único beneficiado em uma narrativa familiar de abandono, percebido por algumas das irmãs, mas nunca de engano, pois o leitor mal consegue conceber que nem todos soubessem de sua vida dupla.


Não conseguimos responder a tudo na concepção de nós mesmos, e Laura, na autonarrativa que se projeta sobre as memórias alheias para compreender a própria história, não responde a tudo porque não pode e não precisa, a imaginação preenche as lacunas. Somos todos tão conscientes dos outros quanto o somos inconscientes de nós mesmos.

 

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Publicado originalmente no https://medium.com/@liviamilanez/as-dores-delas-um-romance-de-ana-raja-de3dc48ea4da